Por Ricardo Godim
Decepções, desapontamentos e traições serviram para reeducar-me.
Eu precisava desaprender alguns valores que incorporei ao longo dos anos.
Minha escola foi complicada. Convivi ao lado de vespas fascinadas por luz de qualquer espécie e também acabei hipinotizado.
Não sei precisar quando, mas, entrevi, em meio às minhas próprias vaidades, que convivia com certos Adônis travestidos de profetas.
Acordei: afetações de gente altiva vinham corroendo valores que aprendera com meu velho pai.
Em algum ponto, notei que tinha chegado a hora de desensoberbecer o coração de delírios jactanciosos.
Hoje converso com a alma para não cobiçar nada que me deixe de gravata lavada e colarinho branco. Quero nunca mais precisar de confete, holofote, palmas.
Proponho a mim mesmo viver sem espalhafato. Depois de muita luta, reconheço: tenho poucos relatos surpreendentes para contar.
Na maioria das vezes falo e não vejo grandes arrebatamentos em quem me ouve.
Querubins não aparecem em minhas preces. Desejo continuar assim. Espero que pessoas comuns se tornem os meus amigos.
Quero a companhia de gente que se sente atraída pela simplicidade.
Não evitarei a densidade de minhas inquietações. Dúvidas me assolam. Lido com desejos impossíveis. Partilho alegria e perplexidade ao lado de famílias com filhos portadores de síndrome genética.
Choro junto de pais de toxicodependentes. Abraço alcoólicos. Decido não distanciar-me do drama humano. Abandono doutrinas que creditavam o sofrimento universal na conta de uma “providência” divina, elas me roubavam a humanidade.
Nesse percurso de solidariedade, me recuso repetir o pessimismo antropológico que trata crianças como pecadoras, víboras, prestes a injetar a peçonha que herdaram de Adão.
Choro com as condições subumanas que ditadores impuseram aos muçulmanos. Não aceito a miséria da Índia como consequência do pecado de idolatria; critico o imperialismo britânico que produziu aquela pobreza extrema. Não me conformo com tentativas de justificar, teologicamente, a sanha destruidora do colonialismo na África e América Latina.
Sei que viver é amedrontador, mas mesmo assim pretendo nunca esquecer de refutar-me. Serei crítico mordaz do que escrevo. Persevarei em duvidar das conclusões que julguei ter alcançado e zombar de minhas certezas.
Não hesitarei quando ver-me encalacrado com os paradoxos de minhas reflexões. Marretarei a teologia que há pouco me fazia sentido. Não serei tímido ao derrubar parapeitos que protegeram convicções. Por que temer a incerteza? Confesso que me sinto desafiado a dialogar com gente que contesta os alicerces religiosos – basta que sejam éticos e íntegros.
Perco o medo de exílios impostos por probos fariseus. De alguma forma, vejo que me preparei para dar de ombro para convites tentadores. Não sonho voltar às luzes da ribalta. Abri mão de conviver com a nata e não me arrependo.
Não nego a angústia de saber-me mortal. Inconformado com a brevidade da vida intensifico o dia-a-dia. Tenho pouco tempo, mas ainda pretendo conhecer alguma geleira chilena, escalar algum pico alpino e mergulhar em algum coral caribenho.
Conto os anos e me pergunto quantos livros lerei. Entenderei a filosofia de Hegel? Degustarei mais poesia? Meditarei nas Escrituras? Noto essa fome de viver sempre que observo a areia da ampulheta escorrer sem trégua.
Assumo que felicidade não é um absoluto, apenas um jeito de perceber os instantes.
Tardiamente, aprendo a transformar refeições em rito sagrado.
Mais do que nunca cuido para que apertos de mão valham como gesto de amizade.
Espero saber rir de falsas onipotências – as minhas, principalmente.
Coloco esperança em meu horizonte existencial. A frágil semente que despretensiosamente planto precisa carregar o destino de ser carvalho.
Breve, passarei. Despeço-me do sonho de Ícaro, não ambiciono o sol; na estrada, basta-me um lampião. Ah, por último: se acendo rastilhos de pólvora, estou contente!
Soli Deo Gloria
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